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Sobre estar trabalhando de casa por 10 meses

Sim, eu me sinto privilegiada. Privilegiada em não ter perdido meu emprego e em ter continuado a trabalhar “normalmente” na segurança de casa durante a pandemia. Eu sei disso. Mas a questão aqui não será falar sobre este privilégio, mas como eu mudei nestes 10 meses que estou trabalhando em casa, sem pisar no meu local de trabalho, mesmo que ele fique há 30 minutes de onde eu moro. Pausa aqui para a foto que bati no último dia que fui para o trabalho: ganhamos uma máscara N95 e eu bati uma foto, até achando que era um pouco exagero a máscara. Eu nem imaginava o que iria acontecer…

Meus dias antes da pandemia eram mais um menos assim: acordávamos bem cedo, fazia a lancheira do Thomas, dávamos café para as crianças rapidamente e cada um ficava encarregado de levar uma criança: Ian ia para escola geralmente comigo e Thomas ia para a escola com o Ju. Eu ia tomando café da manhã no carro mesmo e ouvindo um podcast enquanto pensava em tudo que eu tinha que fazer naquele dia. Como saía cedo – 7:45am já estava na Gardiner dirigindo para o leste – eu não pegava tanto trânsito e em 40 minutos estava no trabalho. Chegava no trabalho em torno de 8:30am e antes da reunião diária da minha equipe pegava um papel e anotava TUDO que eu tinha que fazer naquele dia. Eu tenho essa mania e gosto de ir riscando tudo que foi feito: gosto de visualizar minha produtividade diária. No geral, durante o dia eu só levantava da cadeira para ir ao banheiro e esquentar meu almoço, a não ser que tivesse uma reunião. Eu comia na frente do computador mesmo: trabalhando direto para terminar tudo e voltar para casa.

A volta do trabalho sempre era mais demorada: saía 4pm e sempre pegava trânsito. Nos dias “bons” chegava 5pm na escola do Thomas. O Ju, então, pegava o Ian. Quando o Ju se atrasava eu pegava os dois e o Ian ia para casa perto das 6pm, ficando 11h na creche. Chegava em casa em torno de 5:30pm, arrumava o jantar, todos comiam, as crianças brincavam um pouco e já iam para o banho. Por volta de 7:30pm eles estavam na cama e era minha hora de arrumar a casa, organizar a roupa, fazer o almoço para o dia seguinte, escrever no blog e ainda trabalhar um pouco caso houvesse necessidade. No outro dia, tudo acontecia novamente desta mesma maneira.

Confesso para vocês que quando leio tudo que escrevi acima eu não entendo como eu conseguia. E não digo isso por trabalhar não – porque eu amo trabalhar – mas falo que não entendo como eu conseguia ficar apenas 2h30-3h por dia com meus filhos, sempre na correria e sempre longe de casa. O meu dia-a-dia se baseava em “fazer acontecer” e “prover”: ter tudo organizado para os meninos, trabalhar muito e não parar, porque se eu parasse eu não sabia se conseguiria voltar para o pique que precisava para fazer tudo funcionar.

A pandemia chegou e fomos orientados a ficar em casa: eu, meu marido e as crianças. No começo eu lembro de sentar com meu marido e falar “e agora?”. Eu morria de medo de perder meu emprego – porque trabalho com pesquisa científica e sabia que a verba que o governo destina para minha área de estudo iria diminuir (ou ir toda para este novo vírus). Mesmo com medo eu resolvi arregaçar as mangas e trabalhar muito: mostrando que não importa onde eu estivesse eu iria continuar sendo produtiva. Combinei com meu marido que iríamos dividir o cuidado com os meninos: eu iria cuidar deles pela manhã e ele à tarde. Lembro bem no primeiro dia: eu sentada no canto do quarto – num aparador que fiz de escritório – e conseguindo ouvir os meninos gritando, pedindo comida e querendo pular lá embaixo. E eu tentando me concentrar e fazer análises estatísticas no meio daquele barulho e também de toda a tensão que a pandemia estava trazendo. Eu achei que não iria dar certo.

Mas deu. E deu MUITO certo. Ainda naquela primeira semana eu consegui ser super muito produtiva e comecei a riscar tarefas que há meses estavam na minha lista. As semanas foram passando e eu continuei sendo mais e mais produtiva, aceitando projetos diferentes, escrevendo muito, lendo demais e trabalhando como nunca pensei que iria trabalhar. Escrevi mais de 20 artigos científicos em 2020, trabalhei em 10 projetos, fiz palestras online, participei de congressos, orientei meus estudantes e até fiz cursos. Um dia desses parei para refletir o porquê disto ter acontecido (porque eu realmente não esperava) e me deparei com este vídeo enviado por uma amiga que me conhece muito bem e tudo fez sentido.

No começo eu achava que eu estava sendo mais produtiva porque eu não perdia tempo no trânsito indo e voltando do trabalho (pelo menos 2h do dia). No vídeo que citei acima eles falam que a maioria das pessoas considera o commute a pior parte do seu dia. Eu não achava ruim: adorava dirigir vendo a CN Tower, colocando minhas idéias em ordem e tendo um tempo só para mim. Hoje eu entendo que não foi isso que me ajudou e sim eu me sentir completa vivendo TODOS os papéis da minha vida de maneira mais alinhada, distribuída, justa. Pela manhã eu sou mãe, cuido da minha casa, penso e preparo com carinho o que minha família vai comer. Mas quando o relógio bate 12:30pm, eu subo e me transformo na Gabriela pesquisadora, aliviada e com a cabeça tranquila em saber que os filhos estão em casa, que o trânsito não irá impedir ela de chegar tarde para pegar os meninos, que a carne para o jantar está descongelando lá embaixo, que a roupa está sendo lavada na máquina e que, apesar de ser meio-dia, seu dia de trabalho está apenas começando. Quando eu subo no terceiro andar da minha townhouse e fecho a porta eu consigo de alguma maneira mudar algo na minha cabeça e me concentrar no meu trabalho, assim como quando eu desço eu me desligo de tudo que tenho que fazer e viro mãe.

Sim, não posso ignorar o fato de que o único tempo livre que tenho para mim mesma é trabalhando (e quem me conhece no trabalho sabe que minha cabeça não pára e que eu não consigo relaxar e pensar em outras coisas). Mas ao mesmo tempo eu lembro de ficar querendo aquele tempo a mais com meus filhos ou na minha casa ou até dobrando roupa com mais calma. A pandemia me deu este tempo a mais e eu não posso me sentir triste por isso.

Claro que nem tudo é fácil. Nossas noites sempre foram de muito trabalho – incluindo finais de semana – desde que a pandemia chegou. Trabalhamos até meia-noite, 1am, 2am – um do lado do outro – e tem vezes que nem trocamos uma palavra por horas seguidas. Temos a sorte de termos chefes que nos dão flexibilidade com horários e assim pudemos organizar nossos schedules para trabalhar nos horários que os meninos dormem. Fiquei surpresa o quão produtiva eu consigo ser à noite.

Eu sou uma pessoa comunicativa e que gosta de conversar. Eu sinto falta das conversas com as pessoas que trabalham comigo e, principalmente, das reuniões tão ricas e discussões positivas que me ajudaram muito no meu crescimento profissional. Não é a mesma coisa fazer tudo online e com uma câmera. Os “encontros ao acaso no corredor” não existem mais. Tentamos trocar emails mas não é a mesma coisa. Algumas pessoas estão de volta ao escritório mas eu optei por continuar assim, até porque o local que eu trabalho não encoraja você estar lá a não ser que você precise.

Eu quis trazer este texto aqui para mostrar como a pandemia me mudou e como, de certa forma, foi importante esta pausa na loucura da minha vida para eu refletir e conseguir distribuir a atenção diante de tudo aquilo que me faz bem. Não ache que por eu estar sendo produtiva trabalhar em casa está sendo fácil: não é. Algumas vezes os meninos querem a mamãe, algumas vezes eu preciso que todo mundo saia de casa para eu fazer uma apresentação e não correr o risco das pessoas ouvirem gritos, e por ai vai…. mas eu me sinto motivada e ter essa força dentro de mim é muito poderoso. Saber que meu trabalho científico faz a diferença vida das pessoas e dar continuidade a ele em casa porque eu me importo com a sociedade é algo que deixou meu coração cheio em meses que não tivemos muitos motivos para isso.

1 comentário em “Sobre estar trabalhando de casa por 10 meses”

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